Entre aqueles que não eram os seus, ela caiu e chorou. Os olhares tortos ainda a feriam sem encarar, conversas escusas trocadas em cada esquina. Mas disseram que ela deveria ir, e ela foi. Apesar da dor, levantou-se, e com um sopro curou todas as feridas da alma. Apontaram os caminhos e disseram que ela conseguiria, que já era hora de deixar suas asas e seguir andando. E ela seguiu, ainda que com passos trôpegos e errantes, de quem começava a aprender a caminhar. Passou por ruelas escuras, becos imundos e avenidas confusas nas quais era proibido ver, ouvir e falar - consigo e aos outros.
No adiantado das horas, quase não podia olhar para o céu, e a lua refletida nas poças de água podre se tornara a melhor amiga. Aos poucos, acostumara-se com a noite eterna, e o infinito não mais a intrigava. Aprendia bem todas as lições que aquele mundo tentava lhe ensinar: Parara de tentar encontrar os porquês que lhe faltavam, evitava os postes de iluminação, com medo do que a luz poderia lhe revelar. Sua ânsia era apenas a de chegar, mesmo sem saber o que lhe aguardava no fim. Mesmo sem saber se havia um fim.
Não percebia que a cada passo se tornava mais como os outros que por ali passavam. Já não tropeçava mais nos bueiros, já conseguia andar em linha reta. Sua essência de anjo caído ia aos poucos se dissipando, levada por suor e lágrimas que deixara derramar.
Um dia, deparou-se com um espelho e notou que sua imagem deturpava a superfície perfeitamente reluzente. Tornara-se uma sombra maltrapilha. Chorou ao perceber que suas asas se atrofiaram por falta de uso. No entanto, uma coisa o mundo não pode lhe tirar: às vezes se pegava reparando nas belezas do caminho e sentindo saudade das estrelas. Era enorme a vontade de conversar com elas naquele idioma extinto, e fazer pedidos para aquela que brilhasse mais forte. Achou que tivesse há muito esquecido como dizer, e arriscou um sorriso quando se deu conta de que ainda podia pronunciar as palavras mais belas. Repreenderam-na por tentar, e disseram que ela deveria continuar sem pausas. E ela foi, mesmo com seus pés exibindo feridas em carne, manchados por sangue, suor e sujeira.
Entre todos os cruzamentos, já não identificava as ruas que entravam, as ruas que saiam. Sentia-se pequena e fraca diante da imensidão das montanhas de concreto que a enclausuravam. Sentia-se doente e com fome. Implorava por um pedaço de pão, por um vislumbre de vida. Sussurraram para que ela desistisse, e ela obedeceu.
Encontrou abrigo e repouso sob uma sacada, e por lá morou por tanto tempo que nem sei. Às vezes notas doces saiam da janela e penetravam em seus ouvidos. O som da gaita solitária contava-lhe histórias sobre a melancolia e a tristeza infinita, e ela se recolhia para escutar com atenção. Aquele era seu único momento de plenitude. Um dia, em uma dessas conversas unilaterais, pensou ter ouvido um convite e bateu três vezes na porta. Gritaram que ela deveria ir embora, mas dessa vez manteve-se firme e decidiu ficar. E esperou eternamente, mas a porta não se abriu.